As pessoas perguntam que tipo de jogo eu estou fazendo e eu não consigo responder. Não porque eu não sei explicar, mas porque a palavra que eu utilizo para explicar não existe no vocabulário da maioria, e só a conhecem aqueles que se aventuraram nos nichos mais isolados dos jogos.
O intuito deste post é explicar de uma vez por todas o que é um Roguelike, de uma forma completa, sem usar outros termos que ninguém vai entender também.
Nível 1: Roguelike é um gênero de jogo
Roguelike é um gênero de jogo. Assim como nós temos jogos de luta, corrida e de tiro, nós temos os jogos roguelikes.
Esse gênero existe há 40 anos!
Rogue é o jogo que dá nome ao gênero, pois os jogos seguintes foram todos feitos seguindo os moldes de Rogue. Ou seja, Roguelike é o mesmo que dizer: "Semelhante ao Rogue".
Trazendo um jogo mais famoso de exemplo, é como se ao invés de nos referirmos a jogos parecidos com Mario como "jogos de plataforma", nós disséssemos que eles são Mariolike.
Porém, no caso do Mario, o gênero é plataforma, e todo mundo sabe o que é. Quando o Nintendo 64 chegou e fizeram um Mario 3D, começaram a dividir os jogos de plataforma entre 2D e 3D.
Mas a complexidade é um tema comum entre os roguelikes, e ela já começa em sua definição. Pois se esta definição se baseia em um único jogo de 40 anos atrás, é certo que os jogos mais recentes estão se afastando cada vez mais do Rogue original.
Todas as imagens deste post são de jogos com a tag "Roguelike" na Steam. Preste atenção em como alguns são similares e outros são completamente diferentes.
Nível 2: Como de fato é o jogo Rogue?
Uma coisa que nem todos se perguntam, mas deveriam.
Rogue é um dungeon-crawling (ou seja, você invade uma masmorra cheia de perigos e inimigos, inspirado por Dungeons and Dragons), com o objetivo de chegar até a última fase (26 ao todo) para conquistar o Amuleto de Yendor.
Todas as "fases" são geradas pelo computador. Isso significa que a cada vez que você jogar, vai se deparar com um novo calabouço para ser explorado. Nós chamamos isso de "procedurally generated", que significa que foi gerado de forma procedural (pelo computador).
Ele é um jogo em turno (turn-based), onde nada acontece enquanto você não fizer uma ação. Um turno do jogador, um turno para os inimigos, e assim por diante.
Não dá para salvar. Ou seja, se você morrer, vai ter que começar do zero, onde tudo será gerado novamente. Nós chamamos isso de permadeath (morte permanente).
Gráficos em ASCII (caracteres exibidos diretamente no terminal). Era algo comum para jogos desta época.
Nível 3: Roguelikes clássicos (1980-200X)
Rogue não era um jogo comercial, era um projeto de dois estudantes universitários. Boa parte dos jogos que seguiram esse estilo nos mais de 20 anos seguintes também não eram comerciais.
Alguns destaques deste período:
1983 - Moria - 50 níveis de profundidade e o Balrog como chefe final. Introduziu uma fase que serve como uma cidade, onde os jogadores podiam comprar equipamentos e itens em geral.
1987 - NetHack - Versão melhorada de Rogue, feita ao longo de diversas iterações entre vários "Hacks" do Rogue original. Tem uma quantidade enorme de conteúdo, classes, puzzles, itens, etc. É mantida até hoje.
1990 - Angband - Seguindo a linha de Moria, inspirado em Tolkien. 100 níveis para derrotar Morgoth. Deu origem a diversos outros jogos.
1994 - ADOM - Thomas Biskup adiciona narrativa complexa. O primeiro roguelike com história.
Todos esses jogos compartilhavam as mesmas características do Rogue original. Fantasia medieval, em turnos, ASCII, permadeath, etc.
Nível 4: Invadindo outros gêneros (2002 em diante)
A coisa começa a complicar quando outros gêneros começam a implementar algumas características que tornam os roguelikes tão interessantes.
Um deles é o Dwarf Fortress, que estaria no gênero de simulação e/ou city building. Só que ele traz conceitos como permadeath (com o lema "Losing is fun!"), procedural generation, e até mesmo os gráficos em ASCII (o motivo é ser fácil de desenvolver, sem se preocupar com imagens).
Caso você nunca tenha ouvido falar em Dwarf Fortress, ele é um dos jogos mais famosos e importantes na atualidade. Foi lançado sem fins lucrativos, mas os desenvolvedores trabalham nele até hoje, e recentemente fizeram uma versão gráfica e comercial, garantindo milhões de dólares de faturamento. A vida dos irmãos Adams mudou completamente depois disso.
Spelunky mantinha quase todos os atributos dos Roguelikes clássicos, exceto o fato de que ele era um jogo de plataforma 2D. Sem ASCII, sem turnos, sem complexidade numérica.
Quando a comunidade dos roguelikes clássicos viu estes jogos surgindo, perceberam que seria necessário trabalhar em uma definição melhor do gênero, pois eles já não tinham mais nada em comum com o Rogue.
Nível 5 - A Interpretação de Berlim
Ah, a famosa Berlin Interpretation. Fonte de brigas nos fóruns da internet até hoje. O que me assusta é que ninguém entendeu nada, mas eu pretendo explicar aqui.
Em 2008, aconteceu a Conferência Internacional de Desenvolvimento de Roguelikes, em Berlim. Lá, foi criado um documento chamado de "Interpretação de Berlim" onde são definidos critérios para classificar o gênero Roguelike. Segue o trecho introdutório traduzido:
"Roguelike" refere-se a um gênero, não meramente "similar ao Rogue". O gênero é representado pelo seu cânone. O cânone para Roguelikes é ADOM, Angband, Crawl, Nethack e Rogue.
Esta lista pode ser usada para determinar o quão roguelike um jogo é. Não possuir alguns pontos não significa que o jogo não é um roguelike. Da mesma forma, possuir alguns pontos não significa que o jogo é um roguelike.
O propósito da definição é para que a comunidade roguelike compreenda melhor o que a comunidade está estudando. Não é para colocar restrições em desenvolvedores ou jogos.
Todo mundo que fala mal deste documento não leu a introdução. O argumento costuma ser absurdo, dizendo coisas como: "A Interpretação de Berlim diz que para um jogo ser roguelike, ele precisa ser em ASCII!". O que é um absurdo por dois motivos.
O primeiro motivo é que este não é o propósito do documento. Eles não quiseram colocar restrições em jogos ou em desenvolvedores, mas apenas definir os focos de estudo da comunidade.
O segundo motivo é que foram listadas 9 características de "alto valor" e 6 características de "baixo valor". O Display em ASCII é uma característica de baixo valor.
Nível 6: Roguelites e Meta-Progresso
Em algum momento, as pessoas começaram a discutir se fazia sentido continuar chamando estes jogos de roguelike, ou se deveria ser criado um novo termo. Foi então que surgiu o "Roguelite".
Não sei exatamente quem inventou o termo, mas algumas fontes sugerem vir do Rogue Legacy.
O principal objetivo era diferenciar um jogo como Caves of Qud (roguelike raíz, modernizado) de jogos como Slay the Spire ou Hades, que apesar de muito bons, não têm exatamente o mesmo tipo de experiência esperada pelos fãs do gênero.
Slay the Spire ficou absurdamente famoso, pois ele trouxe uma tendência que estava em alta nos boardgames (deckbuilding) e juntou com elementos roguelike, criando um jogo viciante.
Só que havia um novo elemento que começou a aparecer nos Roguelites. A possibilidade de se tornar mais forte no jogo conforme você jogava. Ou seja, a morte no jogo não significa apenas que você teria de começar tudo de novo, mas significava que todo o seu progresso poderia ser convertido em "pontos" de alguma forma, e esses pontos poderiam ser trocados por novas habilidades e upgrades em geral.
O nome disso ficou conhecido como metaprogression, ou Meta Progresso.
Com os gráficos acima, podemos ver a seguinte diferença:
Roguelikes clássicos exigem que o jogador fique bom para conseguir progredir no jogo
Roguelites facilitam o avanço no jogo através do meta-progresso, fazendo com que o jogo fique mais fácil com o tempo.
Uma pequena mudança no game design fez com que o gênero roguelike se tornasse acessível às massas, pois agora qualquer pessoa podia se sentir motivada a "jogar mais uma vez", uma vez que o progresso no jogo era garantido.
Dwarf Fortress (Steam) - 2022
Nível 7 - Proposta de Definição
O significado das palavras evoluem, e nem todos gostam disso. O fato é que o significado de roguelike evoluiu e hoje abrange muito mais jogos.
A minha proposta é não tentar separar RogueLIKEs de RogueLITEs, mas sim colocar um dentro do outro.
Roguelike é um gênero de jogo caracterizado pela geração procedural de conteúdo, permadeath (morte permanente que reinicia a progressão principal) e alta rejogabilidade. Cada partida oferece uma experiência única através de mapas, inimigos ou mecânicas geradas algoritmicamente, incentivando múltiplas tentativas para dominar os sistemas do jogo.
Roguelike Clássico segue os princípios estabelecidos pela Interpretação de Berlim: geração procedural de dungeons, permadeath absoluta (sem meta-progressão), baseado em turnos, grid, complexidade sistêmica profunda e foco total na habilidade e conhecimento do jogador. Exemplos canônicos incluem NetHack, ADOM, Angband e Crawl.
Então, quando me perguntarem novamente qual o tipo de jogo que estou fazendo, vou dizer que é um roguelike clássico, e vou enviar o link deste artigo.